Entre os conceitos de esquerda e de direita, no espectro político, há muitas zonas cinzentas. Essa discussão tem sido central no Brasil, em especial nos últimos anos. Temos dito e acreditado em muita asneira. Vem comigo dar uma olhada nessas gradações No território da direita, por exemplo, há os liberais e os conservadores, com ideias muito distintas de como gerir um país. E é notável o tanto que os liberais, capitalistas, têm em comum com os sociais-democratas, que estão no terreno da centro-esquerda.
A Teoria da Ferradura, registrada em livro pelo filósofo francês Jean-Pierre Faye, em 2002, é interessante porque quebra com a ideia de que o caminho que leva da esquerda à direita é uma linha reta. A extrema direita e a extrema esquerda, portanto, não seriam polos opostos de uma régua linear. A Horseshoe Theory verga essa régua até ela assumir a forma de uma ferradura. Ou seja, as duas extremidades ficam bastante próximas.
Imagine uma ferradura com as pontas abertas viradas para cima. No arco da direita, que pode ser definido como a coluna do “individualismo”, você tem, na extremidade superior, o Nazismo e o Fascismo. Mais abaixo, num ponto médio do arco, você tem o reacionarismo das elites, o conservadorismo das grandes corporações, o monarquismo, o fundamentalismo religioso.
Já no arco da esquerda, que pode ser definido como a coluna do “coletivismo”, você tem, na extremidade superior, o Comunismo. Mais abaixo, num ponto médio do arco, você tem o Socialismo, o populismo de esquerda.
Nas duas extremidades superiores da ferradura, tanto à esquerda quanto à direita, estão localizados os projetos que envolvem o controle dos indivíduos e a supressão das liberdades individuais. O terreno do totalitarismo, das ditaduras, da intolerância ao diverso, da perseguição política e da eliminação dos opositores. (Também é o território do fundamentalismo religioso — bem como das demais doutrinas ou ideologias que não admitem uma multiplicidade de visões e que trabalham pelo enquadramento e pela padronização do indivíduo, e não pelo seu direito às singularidades e às idiossincrasias.)
Na parte de baixo, onde a ferradura faz a curva, no trecho mais distante das duas extremidades superiores, está o terreno das ideias libertárias, democráticas, do convívio com as diferenças e de respeito ao contraditório, com o poder distribuído entre as pessoas, na infraestrutura social, em vez de concentrado em instituições, na superestrutura da sociedade.
Próxima a essa curva de baixo, no arco da esquerda da ferradura, está a social democracia. No arco da direita, está o liberalismo. E mais abaixo, no extremo da curva, estão as utopias mais afastadas da ideia da necessidade ou da legitimidade de um poder central: o anarcocapitalismo, o anarcossindicalismo, o mutualismo e o voluntarismo.
Então, você poderia recusar a dicotomia entre esquerda e direita e remapear as propostas de organização política e econômica da sociedade em dois eixos: um vertical, tendo na ponta de cima o “controle” e na ponta de baixo a “liberdade”, e outro, horizontal, tendo num flanco o “coletivismo” (arco da esquerda) e no outro o “individualismo” (arco da direita).
Ultradireita, centro-direita, ultraesquerda e centro-esquerda
A ultradireita, no resto do mundo, era fascista, nazista. A ala dos supremacistas brancos, da Ku Klux Kan, dos skinheads. E havia, entre essa turma, tanto quanto no seu oposto à esquerda, uma visão religiosa do mundo. Para a ultradireita, o progresso passaria por coisas como racismo, eugenia e totalitarismo. (Enquanto, para a ultraesquerda, por coisas como a ditadura do proletariado, a revolução total e o fim da história.) A ultradireita é o que fica à direita, depois que o espectro democrático acaba.
No Brasil, a ultradireita sempre foi representada pelo pensamento feudal mais profundo, o ultraconservadorismo mais arraigado, baseado na cassação dos direitos individuais e na supressão das diferenças, com o apoio de um Estado policial e do uso da violência, em nome do controle dos indivíduos pelas instituições, e dos mais vulneráveis pelos mais poderosos. A nossa ultradireita, oligarca, positivista, integralista, sempre foi carola, cafona, passadista, sempre se debateu por censurar o futuro em nome da eternização do passado.
A ultraesquerda é uma proposta de destruição da propriedade privada, de reação violenta ao poder econômico — que também embute a supressão dos direitos individuais pelo Estado. A ultraesquerda, de um lado, é o desejo juvenil de ir contra “tudo que está aí”, de quebrar o que está estabelecido, sem saber direito o que colocar no lugar. Algo próximo do niilismo. (Onde, talvez, se possa espetar os punks.) De outro lado, é o projeto totalitário dos anticapitalistas, com o mesmo tutano de irracionalidade e de virulência ditatorial da ultradireita. A ultradireita é o que fica à esquerda, depois que o espectro democrático acaba.
Já a centro-esquerda era o pessoal que queria uma sociedade menos desigual, também por meio de um papel maior para o Estado, mas dentro do âmbito do capitalismo e de alguns princípios liberais — como direitos individuais e liberdade econômica. Era o pessoal da Social-Democracia e do welfare state — o Estado de bem-estar social -, duas concepções europeias.
E a centro-direita talvez tenha seu melhor exemplo no partido Democrata americano — os “liberais”, como eles são chamados por lá. Um capitalista que não é radical na sua crença na mão invisível do mercado e que acha que é preciso regular a ambição humana, além de oferecer um colchão mínimo àqueles que não puderem sair “vencedores” no modelo de livre competição.
Em resumo: a ultradireita quer um Estado policial a serviço da tradição e da velha classe dominante, a direita (os conservadores) quer um Estado democrático a serviço dos mais ricos, a centro-direita (o liberalismo) reconhece o papel do Estado, mas acredita que o desenvolvimento vem do mercado, a centro-esquerda (a social-democracia) reconhece o papel do mercado, mas acredita que o desenvolvimento requer a ação do Estado, a esquerda (os socialistas) quer um Estado democrático a serviço dos mais pobres, contra o mercado, e a ultraesquerda quer um Estado policial a serviço de uma nova classe dominante revolucionária e anticapitalista.
Revolucionário vs Reacionário, Progressista vs Conservador
Há outros conceitos usados à larga sobre os quais vale a pena consensar. “Revolucionário”, por exemplo. Como quem esteve na situação, na maior parte do tempo e na maioria dos lugares, foram as elites econômicas, cujo poder advinha de um modelo de acumulação de riquezas, “revolucionário” era um termo que se usava para definir o indivíduo — de esquerda — que queria a revolução anticapitalista.
E “reacionário” era o indivíduo que “reagia” às forças da revolução, o sujeito conservador que queria manter os privilégios da classe dominante. O reacionário operava pela manutenção do status quo — que era, em grande medida, o capitalismo. Tratava-se, portanto, de alguém de direita.
Quando o reacionário não pertencia exatamente à elite, mas simpatizava com àquelas prerrogativas de classe, ele era chamado de “pequeno-burguês” — o sujeito que gostava dos valores do capitalismo e da ideia de ganhar dinheiro e de adquirir as coisas que sonhava para si e para sua família, mesmo quando essa possibilidade, para ele, jamais sairia do campo do sonho.
É interessante notar que quando o regime opressivo é de esquerda, como em Cuba ou na Coreia do Norte, países geridos há mais de meio século pela mesma família, quem se opõe a ele não é considerado “revolucionário”, mesmo que se debata contra a elite do lugar, mas, sim, “reacionário” — porque “revolucionários” são aqueles que estão no poder.
É uma contradição em termos — você não pode ser o cara que se eternizou no poder e o “revolucionário” ao mesmo tempo. (Assim como você não pode estar na oposição, bradando por mudanças, e ser chamado de “reacionário”.) Falar em “governo revolucionário” é mais ou menos como falar em “visão cega” ou “movimento estático”. Se você está na situação, em uma ditadura, você está na posição de reagir a qualquer voz dissidente, a qualquer desejo de transformação — então você é o “reacionário”.
Diante de “reacionários” de esquerda, os “revolucionários” são os caras que sonham com a livre iniciativa. (Será que num regime assim, ao sujeito médio que deseja manter os privilégios do politburo, mesmo quando ele mesmo não é membro do partido, uma vez que não podemos evidentemente chamá-lo de “pequeno-burguês”, seria possível nomeá-lo “pequeno-comunista”?)
Da mesma forma, “progressista”, no Brasil, sempre foi um conceito associado à esquerda — uma vez que previa mudanças e reformas num cenário historicamente dominado pelas oligarquias. Na mão contrária, “conservadores” eram todos aqueles que não queriam mudar nada — uma ideia associada à direita.
O que parece é que há “progressistas” tanto à esquerda quanto à direita, buscando reformar o país, cada qual pela sua via. E que também, ao menos desde que a esquerda chegou ao poder central no Brasil, dos dois lados da mesa, “conservadores” que dependem do atual estado de coisas para continuar existindo.
Liberal na economia, conservador nos costumes — e vice-versa
As definições clássicas de esquerda e direita, e suas derivações, foram concebidas num mundo dicotômico e polarizado. O século 20 foi marcado por uma disputa aberta entre capitalismo e comunismo — da Revolução Russa, em 1917, à Queda do Muro de Berlim, em 1989. Esse dualismo nos ajudava a compreender com mais clareza o espectro político. O mundo era mais simples. Havia menos áreas cinzentas. No século 21, as coisas se tornaram um pouco mais complexas. Novas questões surgiram. Temos outros desafios a resolver. E os velhos conceitos têm se mostrado insuficientes para compreendermos e respondermos a todas as nuanças que colocam à nossa frente.
Uma das novas contradições: tem gente liberal nos costumes que não é liberal em termos econômicos. Pessoas que se batem pelas liberdades individuais, no plano do comportamento, mas que ao mesmo tempo querem economia controlada e governo regulando com mão pesada as relações entre os indivíduos.
O contrário também existe: gente liberal na economia e totalitária nos costumes. Pessoas que pregam total liberdade para o indivíduo empreender e gerar riquezas, mas que ao mesmo tempo desejam regular severamente o que cada um faz com seu corpo e com a sua vida, ou o que as pessoas podem dizer ou expressar artisticamente, por exemplo.
Chuck Lorre, criador de séries como Two and a Half Man, no seu vanity card de número 375, que piscou ao fim de um episódio de The Big Bang Theory, tem algo a dizer: “Me perdoe uma pequena reflexão política, mas eu gostaria de discutir algo que venho pensando há muito tempo. Sempre entendi que o Partido Republicano tem, como sua plataforma central, a ideia de que os seres humanos não devem jamais ser dominados por um governo monolítico que lhes diga como viver suas vidas. Eu gosto disso. Trata-se de uma verdade fundamental, e eu não consigo imaginar nenhuma mente de direita discordando disso. Mas tenho notado também que há muita gente no Partido Republicano que insiste em dizer às pessoas exatamente como elas têm que viver. Por exemplo: álcool, sim. Maconha, não. Casamento heterossexual, sim. Casamento gay, não. Jesus, sim. Outros profetas, não. Pena de morte, sim. Aborto, não. Capitalismo, sim (à força, se for necessário). Coletivismo, de jeito nenhum!”
Ou você garante liberdades ao indivíduo, tanto no campo econômico quanto comportamental, e defende esse espaço para decisões e movimentações pessoais (que no fim do dia representam o direito que cada um tem de buscar a própria felicidade do jeito que melhor lhe aprouver), ou você estará caminhando em direção ao dirigismo, ao controle externo, ao totalitarismo da instituições sobre as pessoas. E isso tem a ver com Ditadura — seja ela de esquerda ou de direita — e não com Democracia.
Adriano Silva é jornalista e empreendedor, CEO & Founder da The Factory e Publisher do Projeto Draft. Autor de nove livros, entre eles a série O Executivo Sincero, Treze Meses Dentro da TV e A República dos Editores. Foi Diretor de Redação da Superinteressante e Chefe de Redação do Fantástico, na TV Globo.
Este texto foi extraído (e levemente adaptado) do capítulo “Sobre Direita e Esquerda”, do livro A República dos Editores, do autor, publicado pela Rocco em 2018.
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